Resenha Acadêmica do livro "Vozes de Tchernóbil: A história oral do desastre nuclear"

(Foto: Reprodução Flickr)

A jornalista e escritora Svetlana Alexijevich, nasceu em 31 de maio de 1948, foi repórter em vários jornais locais na Ucrânia e, em seguida, correspondente para a revista literária Neman. Passou parte da carreira se dedicando à escrita narrativas de entrevistas com testemunhas de acontecimentos dramáticos no país. As suas principais obras são a Segunda Guerra Mundial, a queda da União Soviética e Vozes de Tchernóbil. Além do  prêmio Nobel de Literatura, a autora tem grandes prêmios internacionais, como o Erich Maria Remarque Peace Prize (2001) e o National Book Critics Circle Award (2006).

O livro “Vozes de Tchernóbil: A história oral do desastre nuclear'', foi publicado originalmente em língua russa no ano de 1997, e escrito pela jornalista Svetlana Aliexévich. É uma obra difícil e tenebrosa, no entanto, necessária e bem atual, levando em consideração os atuais acontecimentos em Kiev. Sua produção levou onze anos para ser concluída e reúne depoimentos de pessoas que sobreviveram ao maior acidente nuclear da história da humanidade, ocorrido em 26 de abril de 1986 em Tchernóbil, Ucrânia, localizada próxima à fronteira com a Bielorrussia. Um livro muito bem escrito com riqueza de detalhes que possuem a capacidade de transportar o leitor até às ruas de  Tchernóbil e viajar no cenário descrito em cada página, onde surpreendentemente vemos uma organização na forma na qual é trabalhado cada capítulo. 

Voltando no tempo, um pouco antes do acontecido em Tchernobil, após a bomba atômica que matou milhares de pessoas na cidade japonesa de Hiroshima, em agosto de 1945. O mundo passou a saber que os Estados Unidos (EUA) tinham em seu arsenal uma arma extremamente poderosa. Esse fato, consolidava aquele país aos olhos de todos, como  a maior potência militar do mundo. 

Porém, esse grau de hegemonia se tornou um grande incômodo para uma outra nação que, também, possuía uma grande tradição militar, a União Soviética (URSS).  Para não ficar atrás dos norte-americanos, os soviéticos iniciaram um projeto secreto para desenvolver o seu próprio artefato nuclear, em 1949. Denominado  de RDS-1 e, também conhecido como o primeiro relâmpago (primeira bomba atômica soviética), a bomba foi testada com sucesso na área deserta do atual Cazaquistão. Esse foi um dos primeiros passos para o início da chamada corrida armamentista, onde os EUA e a URSS disputavam a supremacia na tecnologia militar. 

O problema veio depois, o termo corrida se tornou cada vez mais habitual no contexto de Guerra Fria, ou seja, a ideia não era mais ser apenas o melhor no aspecto militar, mas sim o mais influente e absoluto em tudo. 

Em 1954, ainda no início da guerra fria, a União Soviética conseguiu se destacar com relação aos Estados Unidos na utilização de energia nuclear para gerar eletricidade. Por conseguinte, os soviéticos inauguraram na cidade de Obniski a primeira usina de energia nuclear. Com o tempo, a utilização de usinas nucleares se tornou cada vez mais popular, surgindo também, em outros países. 

No limiar da década de 70, se inicia a construção de uma central nuclear na fronteira com a Bielorrussia. Já em 1977 começam as atividades na chamada Central Nuclear de Tchernobil que foi considerada uma das mais modernas e potentes do mundo. Com tantos funcionários trabalhando ali foi necessário construir uma cidade para abrigar todos eles, além de seus familiares. Pripyat foi fundada em 04 de fevereiro de 1970 Foi oficialmente proclamada como uma cidade em 1979, porém foi abandonada em 1986, após o acidente nuclear de Chernobil. Atualmente é considerada uma cidade fantasma. 

No final de abril de 1986, o quarto reator da usina explodiu, espalhando partículas radioativas descontroladamente. As consequências dessa explosão, como fica evidente na apuração da autora, foram desastrosas. O acidente foi e continua sendo o maior desastre de todos os tempos.

A jornalista e escritora Svetlana Alexievich, ganhadora do prêmio nobel de literatura de 2015, elaborou esta obra para mostrar em inúmeros relatos de pessoas que viveram os dias seguintes ao desastre. O livro “Vozes de Tchernóbil: A história oral do desastre nuclear”, é visto como a obra mais importante da autora. 

Como mencionado no início deste texto, o livro apresenta uma leitura difícil, mas necessária por mostrar ao leitor situações que são, muitas vezes, perturbadoras. Alexievich, levou anos entrevistando pessoas que vivenciaram de perto, desde trabalhadores da central e seus familiares, até médicos, soldados etc. 

Logo no início da obra a autora apresenta uma nota histórica trazendo informações sobre as consequências do desastre. Ela nos mostra alguns recortes que falam sobre a situação do país durante o acontecimento que muitas vezes acabou ficando à margem das notícias. 

Para a pequena Belarús (com uma população de 10 milhões de habitantes), o acidente representou uma desgraça nacional, levando-se em conta que ali não havia nenhuma central atômica. Tratava-se de um país agrário com predomínio de populações rurais. Nos anos da Segunda Guerra Mundial, os nazistas destruíram 619 aldeias no país, com toda sua população. Depois de Tchernóbil, o país perdeu 485 aldeias: setenta delas estão sepultadas sob a terra para sempre. A mortalidade na guerra foi de um para cada quatro bielorrussos; hoje, um em cada cinco vive em território contaminado. (ALEXIEVICH, Vozes de Tchernóbil: A história oral do desastre nuclear, 1997, p. 10).

No capítulo seguinte, que se chama “Uma voz solitária humana”, iniciam-se literalmente as vozes de Tchernóbil. Neste capítulo do livro contém um único relato, o qual são as memórias da esposa de um bombeiro que faleceu por conta da radiação. Aparentemente, Svetlana optou por criar esse capítulo exclusivamente para essa história devido à situação em si, a qual pode ser considerada uma das mais impactantes. Nele,  é possível acompanhar o que aconteceu com o marido de uma moça chamada Liudmila Ignátienko.  Ele, como bombeiro, foi chamado para conter o incêndio logo após a explosão, no entanto, não houve aviso de que não se tratava de um incêndio comum. A população não tinha conhecimento do que de fato estava acontecendo, inclusive, os médicos e enfermeiros – muitos deles acabaram falecendo também. 

O período inicial do incêndio foi catastrófico, não apenas pela radiação, mas também por conta do descaso das autoridades  e pela demora em retirar as pessoas do local.  Essa informação fica mais clara quando a autora diz:

Ninguém falava em radiação, só os militares circulavam com máscaras respiratórias… As pessoas compravam os seus pães, saquinhos com doces e pastéis nos balcões… A vida cotidiana prosseguia. Só que… as ruas eram lavadas com uma espécie de pó…(ALEXIEVICH, Vozes de Tchernóbil: A história oral do desastre nuclear, 1997, p. 18-19).


O livro apesar de ter alguns capítulos à parte é basicamente dividido em três elementos principais com inúmeros pequenos relatos que são extremamente variados. É possível acompanharmos através do ponto de vista das pessoas que continuaram vivendo nas redondezas, mesmo após a explosão, e que se recusaram a ir embora e largar tudo o que tinham. Tem o drama das famílias que optaram por deixar tudo para trás, pensando que poderiam voltar para casa um dia, coisa que nunca aconteceu. E a questão do preconceito que se formava através do medo gerado de boatos absurdos. Em um trecho do livro a jornalista mostra que as crianças de Tchernóbil sofreram muito nesse aspecto, principalmente, pelo bullying. Em outra perspectiva, gerado pela dificuldade em fazer amigos já que ninguém queria se aproximar demais.

Depois que nos transferimos para Moguilióv e o nosso filho foi à escola, no primeiro dia voltou correndo para casa, chorando. Puseram-no ao lado de uma menina, mas ela não quis sentar-se com ele porque era radiativo, como se por sentar-se ao seu lado pudesse morrer. O meu filho estava no quarto ano e aconteceu de ser o único de Tchernóbil nessa série. Todos tinham medo dele, chamavam-no de “vaga-lume”, de “ouriço de Tchernóbil”... Eu me assustei de ver como a infância dele acabou tão rápido. (ALEXIEVICH, Vozes de Tchernóbil: A história oral do desastre nuclear, 1997, p. 243).


A escritora, também, evidencia histórias de soldados, bombeiros e voluntários que se sacrificaram – seja para salvar vidas ou pela vontade de fazer algo pelo país. No caso dos militares podemos perceber como a cultura da guerra, presente na mentalidade dos soviéticos, se mistura com toda a catástrofe de Tchernóbil. Muitos relatos da obra mostram como as pessoas achavam aquela situação parecida com uma guerra. Haviam muitos soldados, alguns até armados pela incerteza do evento se tratar de um acidente ou um atentado em anos de guerra.

O livro como um todo é muito amplo e rico em detalhes, existem muitos assuntos sendo tratados ao mesmo tempo, e alguns mais delicados que outros, como por exemplo, os efeitos colaterais da radiação no ser humano.

Após a leitura da obra é possível afirmar que Vozes de Tchernóbil é um daqueles livros que conseguem organizar grandes eventos. Não é um livro confortável e, provavelmente sentimos um determinado incômodo, tristeza e até mesmo revolta com tudo que é relatado. A autora evidencia o sofrimento humano extremo, a destruição ambiental, contaminação de alimentos, coisas que atravessam a obra através das memórias dos sobreviventes.   Mesmo assim, é uma leitura importante e válida para ajudar as pessoas a não banalizar as coisas. Falando como um leitor, acredito que não seja um livro para entender os detalhes técnicos do acidente ou a história do ocorrido. O episódio em Tchernóbil foi algo que alterou para pior e de maneira drástica a vida de milhares de pessoas.

O desastre de Tchernóbil chocou o mundo e alterou a região que foi deixada sem respostas. Pensando na configuração hierárquica para gerir o acidente, acredito que o descaso tenha ocorrido pois a divulgação do acontecimento nuclear poderia ser considerada um grande risco político. O que pode ter apressado o fim da então União Soviética. E quando o anúncio foi efetivamente feito já tinha se passado tempo suficiente para que as perdas acontecessem de maneiras drásticas e traumáticas.

O evento vai além da questão histórica, pois traz além das informações do acidente, memórias, traumas, perdas, e impacto ao leitor. A autora se preocupa em manter a essência das narrativas que coletou e faz uso de elementos literários mesclados com os jornalísticos, em outras palavras é um relato jornalístico-literário. Para conseguir chegar até as fontes, a jornalista utiliza das táticas do jornalismo investigativo  na apuração dos dados e de pesquisas. E onde a autora não conseguiu preencher com informações, utilizou-se da literatura, de forma forma ela fez isso para deixar a sua obra mais humanizada.

Ao apagar a sua pessoa e permanecer nos bastidores  Svetlana, desta maneira, faz uso das suas técnicas de entrevistas e até mesmo as recriando. Porém, a sua escolha de permanecer atrás do palco foi por receio de perder a essência para a compreensão dos registros. 

Para descobrir a causa do acidente, foi realizado um julgamento na cidade-fantasma. O Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, considerava-se necessário examinar as causas do delito in loco. O tribunal se constituiu no Prédio da Casa da Cultura local. Os réus eram seis pessoas: o diretor da central atômica, Víktor Briukhánov; o engenheiro-chefe, Nikolai Fomín; o substituto do engenheiro-chefe, Anatóli Diátlov; o chefe do turno, Boris Rogójkin; o chefe da seção do reator, Aleksandr Kovaliénko; e o inspetor do Serviço Estatal de Inspeção de Energias Atômica da União Soviética, Iuri Láuchkin.

Eu acredito que a ciência está no mundo para ser usada, e condená-la não mudará nada, tanto que até os dias atuais ainda existem diversas usinas semelhantes a de Tchernóbil na região da antiga União. Infelizmente, não acredito ter o embasamento, ainda, para determinar quem deveria assumir a responsabilidade do acidente. Mas fico feliz em recomendar o livro para outros estudantes de jornalismo, e outros. Porque o livro traz uma riqueza em conhecimento, técnica, habilidade e empatia por todas as pessoas que tiveram que passar por toda essa situação. O que mais me deixou cativado durante a leitura foi o fato de ter muitas memórias e relatos, alguns até trazem à tona seus momentos de alegria com quem perdeu. Por outro lado, não apreciei muito a condenação dos acusados. Mas é um pensamento meu, tenho muito medo de realizar um julgamento errado a respeito de terceiros. E me emocionei muito!


Por Felipe Reis

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